“Então
por um momento os dois se apagaram na doce escuridão tão profunda que eles eram
mais escuros que a escuridão, por uns instantes ambos eram mais escuros que as
negras árvores, e depois tão escuro que, quando ela tentou erguer os olhos até
ele, só pode ver as ondas selvagens do universo acima dos ombros dele, e então
ela disse: ‘Sim, acho que também te amo. ’”
Felicidade Clandestina
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
Quem escreveu isto?
Andei
mexendo em papéis antigos e encontrei uma folha onde estavam escritas, entre
aspas, algumas linhas em inglês. O que significa que eu copiei as linhas de tão
belas que as achei. No entanto não estava anotado o nome do escritor, o que é
imperdoável. Vou tentar traduzir e não sei se a tradução conservará esse algo
que me tocou tanto:
Uma revolta
Quando o
amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa
amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa com como uma criança ao
notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida
dos sentimentos é extremamente burguesa.
Insônia infeliz e feliz
De repente
os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura. Deve ser noite alta. Acendo a
luz da cabeceira e para o meu desespero são duas horas da noite. E a cabeça
clara e lúcida. Ainda arranjarei alguém igual a quem eu possa telefonar às duas
da noite e que não me maldiga. Quem? quem sofre de insônia? E as horas não
passam. Saio da cama, tomo café. E ainda por cima com um desses horríveis
substitutos do açúcar porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha
que preciso perder os quatro quilos que aumentei com a superalimentação depois
do incêndio. E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se uma escuridão
clara. Não, não se pensa. Senta-se. Sente-se uma coisa que só tem um nome:
solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo, olha-se o relógio,
quem sabe se são cinco horas. Nem quatro chagaram. Quem estará acordado agora?
E nem posso pedir que me telefonem no meio da noite pois posso estar dormindo e
não perdoar. Tomar uma pílula para dormir? Mas e o vício que nos espreita?
Ninguém me perdoaria o vício. Então fico sentada na sala, sentindo. Sentindo o
quê? O nada. E o telefone à mão.
Mas
quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter
essa coisa rara: solidão. Quase nenhum rido. Só o das ondas do mar batendo na
praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o
nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque
súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um
sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou
talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é
meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol
subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos.
A mineira calada
Aninha
é uma mineira calada que trabalha aqui em casa. E quando fala, vem aquela voz
abafada. Raramente fala. Eu, que nunca tive empregada chamada Aparecida, cada
vez que vou chamar Aninha, só me ocorre chamar Aparecida. É que ela é uma
aparição muda. Um dia de manhã estava arrumando um canto da sala, e eu bordando
no outro canto. De repente ― não, não de repente, nada é de repente nela, tudo
parece uma continuação do silêncio. Continuando pois o silêncio, veio até mim a
sua voz: “A senhora escreve livros?” Respondi um pouco surpreendida que sim.
Ela me perguntou, sem parar de arrumar e sem alterar a voz, se eu podia
emprestar-lhe um. Fiquei atrapalhada. Fui franca: disse-lhe que ela não ia
gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que,
continuando a arrumar, e com a voz ainda mais abafada, respondeu: “Gosto de
coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar.”
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
As pontes de Londres
Todas as
vezes que penso em Londres revejo as suas pontes. Achei muito natural estar na
Inglaterra, mas agora quando penso que lá estive meu coração se enche de
gratidão. Vi em Londres uma terra estranha e viva, cinzenta ― tudo o que é
cinzento misteriosamente vibra para mim, como se fosse a reunião de todas as
cores amansadas.
Estive em
contato com a feiúra dos ingleses, que é uma das coisas que mais atrai na
Inglaterra. É uma feiúra tão peculiar, tão bela ― e isso não são meras
palavras. Fazia muito frio, e o vento dava ao rosto e às mãos aquela
vermelhidão crua que torna cada pessoa extremamente real. As mulheres fazem
compras com as cestas, os homens da City usam chapéu-coco. E o Tâmisa é sujo,
tem lama. Já houve peste em Londres. Uma vez se incendiou a cidade inteira. A
peste e o incêndio estavam presentes na minha estada em Londres.
As
pessoas bebem café horrível, em xícara grande, mas o café fumega. Fumegante
como toda a ilha, cujas pontes enegrecidas surgem de quase constante névoa. O fog se exala das pedras do chão e
envolve as pontes.
As pontes
de Londres são muito emocionantes. Umas são sólidas e ameaçadoras. Outras são
puro esqueleto. Quanto aos ingleses, não são tão inteligentes. Mas a Inglaterra
é um dos países mais inteligentes do mundo. Estávamos de carro. Entre uma
cidade e outra, as cidadezinhas inglesas dão mil voltas em torno de si, e a
chuva fina cai nos vidros do carro. Na rua o povo usa roupas tão mal feitas que
terminaram se tornando um estilo belo. E agasalham mesmo. Vejo uma criança de
capotão escuro e meias grosseiras e capuz enterrado abaixo das orelhas, com o
rosto vívido e magro, olhos espertos e cara vermelha ― e aquela entonação pura
das vozes inglesas, interrogativas e orgulhosas.
Só agora
sei quanto amei o vento de Londres que me fazia os olhos lacrimejar de raiva e
a pele gritar de irritação.
E depois
tem as estradas, o campo inglês que é diverso de qualquer outro campo.
Lembro-me de árvores tão altas.
E depois
há o desejo de viajar de todo inglês ― e isso é um movimento inquieto e amplo.
No teatro
em Londres uma coisa essencial se passa. É de tremer de frio e de emoção: o
ator inglês é o homem mais sério da Inglaterra. Em poucas horas ele dá a cada
um aquilo importante que se perde na vida diária. Quando se sai, é a chuva
escura, a rua molhada, as velhas ruas inglesas onde de noite há o desejo de
perigo. Vai-se jantar. Uma comida péssima irrita, no restaurante de comida
tipicamente inglesa. Mas pode-se ir para um restaurante de comida alegre, dos estrangeiros,
em Londres mesmo.
Lembro-me
que houve Idade Média na Inglaterra, e isso está nas torres. A segurança de
certos ingleses chega às vezes a se tornar engraçada. Nas ruas andam depressa,
é um povo lutador. E se o mundo não fosse tão doloroso, seria bonito ver a luta
pela sobrevivência.
E depois
há a saudade dos escritores mortos. Tenho muita saudade de Lawrence.
A rainha
é suave, os jornais têm um jeito provinciano, e quando os ingleses e inglesas
são bonitos passam logo a ter uma extraordinária beleza. E a criança inglesa é
sempre linda, e quando abre a boca para falar, aí é que fica lindíssima.
Tudo isso
se chama saudade: procuro recuperar Londres na memória, nessas notas. E assim
fica apenas anotado, com a maior rapidez, antes que o sentimento passe.
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
Supondo o errado
Suponhamos
que eu seja uma criatura forte, o que não é verdade. Suponhamos que ao tomar
uma resolução eu a mantenha, o que não é verdade. Suponhamos que eu escreva um
dia alguma coisa que desnude um pouco a alma humana, o que não é verdade.
Suponhamos que eu tenha sempre o rosto sério que vislumbro de repente no
espelho ao lavar as mãos, o que não é verdade. Suponhamos que as pessoas que eu
amo sejam felizes, o que não é verdade. Suponhamos que eu tenha menos defeitos
graves do que tenho, o que não é verdade. Suponhamos que basta uma flor bonita
para me deixar iluminada, o que não é verdade.
Suponhamos que eu finalmente esteja sorrindo logo hoje que não é dia de
eu sorrir, o que não é verdade. Suponhamos que entre meus defeitos haja muitas
qualidades, o que não é verdade. Suponhamos que eu nunca minta, o que não é
verdade. Suponhamos que um dia eu possa ser outra pessoa e mude de modo de ser,
o que não é verdade.
Supondo o certo
Suponhamos
que o telefone ande em toda a cidade enguiçado, o que é verdade. Suponhamos que
eu faça uma ligação, e dê sinal de ocupado, o que é verdade. Suponhamos que de
repente o sinal de desocupado está soando em chamada, o que é verdade.
Suponhamos que não atendam, o que é verdade. Suponhamos que em vez de ser
atendido o número discado, ouço uma linha cruzada, o que é verdade. Suponhamos
que por curiosidade simples passo a ouvir a conversa entre um homem e uma
mulher, o que é verdade. Suponhamos que, no final da conversa, eu ouça uma
frase límpida, o que é verdade. Suponhamos que a frase límpida seja “Deus te
abençoe”, o que é verdade. Suponhamos que eu me sinta então toda abençoada,
pois a frase foi também para mim, o que é verdade? Sim. A frase era para mim.
Não suponho mais. Digo apenas “sim” ao mundo.
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